Então, aconteceu. Quando menos esperava, me senti artista. Mas não como aquela aspirante a pintora que, dez anos atrás, pausou a carreira de jornalista para se aventurar na aquarela e vender desenhos, ao gosto do cliente, para encarar a vida adulta e seus boletos sem fim. Só com a cara, a coragem e aquela boa dose de ingenuidade insana dos 24 anos!
Aos 36, terapia (quase) em dia, uma filha e (des)equilibrando jornalismo e arte, sei que sou uma artista porque me empoderei da autorização que só eu poderia dar. Minha arte conta uma história, marcas de uma vida que merece ser contada para que mais mulheres se sintam em casa na própria pele. Não é mais só sobre mim.
A “pesquisa” artística começou com a simbologia da casa, literal e simbolicamente, mas acabou por extrapolar as próprias paredes e atingir a condição humana de existir com a consciência da morte. A série “Sou Casa” revelou a artista que sempre fui e quis ser, mas temia enfrentar. É que para erguer paredes, é preciso encarar e limpar o solo que as sustentarão, com suas imperfeições e ervas daninhas.
E foi essa mulher com cabeça de casa que me mostrou a ferida profunda da infância que precisava ser tratada, de dentro para fora: com a perda da minha mãe, antes dos seis anos, perdi também o lar. Cada irmão foi para uma casa, meu pai para outra, e eu fui morar com minha tia, tio e primos. De filha, me tornei, de certa forma, uma intrusa, noutro lar.
Da noite para o dia, nunca mais vi o quintal onde brincava e corria das chineladas da minha mãe. Sinto saudades até da forma como o sol da manhã batia na terra vermelha entre as folhas das mangueiras e outras árvores. Eu amava aquele quintal, que a minha mãe varria todo até levantar uma nuvem de poeira. Fui feliz demais naquele pedaço de chão batido no interior de Goiás, entorno do DF, com seus cantos, plantinhas e sombras. Era mais que minha casa. Era o mundo inteiro de uma criança.
Desde então, nunca mais me senti pertencente a nenhum lugar. Num dado momento da vida, a necessidade de me sentir em casa me levou a sair do mercado formal e começar um homeoffice com ilustrações. Foi bom vender tantos desenhos, sobre tantos assuntos, conhecer tantas pessoas e suas histórias. Porém, sem perceber, em casa pintando, eu estava me escondendo do mundo de fora daquele quintal, tal qual gostaria de ter feito quando pequena. Mãe é território e eu estava à deriva. Minha arte foi terra à vista, mas era ilha.
Foi durante a pandemia, em 2021, que criei a primeira mulher casa – até o momento são oito telas da série oficial e mais duas anteriores, com a mesma personagem, experimentais, que inclusive vendi num leilão de artes que participei no final de 2024, para duas mulheres.
E esse processo catártico da série Sou Casa contínua. Só que agora, a personagem que senta, quase se levanta e até se deita nas suas cadeiras, não só faz revelações do que preciso curar em mim, como tem alcançando outras mulheres em diversos contextos e interpretações. Após a primeira exposição da série, numa coletiva da Associação Goiana de Artes Visuais (AGAV), algumas mulheres vieram me falar suas impressões sobre os quadros. Tanta vida sendo contada por elas, em tom de desabafo, descoberta, reflexão e autoanálise. Sinto que a mulher-casa deve andar com suas próprias pernas. Viver com toda a força que esse verbo carrega. Se levantar e ir encontrar suas narrativas, inventar tantas outras forem possíveis. E descansar
Recentemente, em mais um turbilhão típico de quem ainda tem quartos por arrumar dentro de si, fui atrás de possuir algo que fosse da minha mãe, pois da nossa casa, nada ficou para mim e isso se tornou demanda urgente. Recebi uma peça de roupa sua, guardada há 30 anos, e que nunca foi lavada. Tem o cheiro dela e nem eu acreditava ser possível, mas tem. Me senti em casa de uma forma muito transcendental para ousar descrever em palavras. Mas vou tentar: foi como quando tenho minha filha no colo, aconchegada enquanto mama, quase dormindo. Segura, entregue, em casa.
Ser casa é urgente.
Expecificações técnicas da série Sou Casa
Cada uma é única (sem reproduções até o momento)
30×50 cm (todas as telas têm o mesmo tamanho)
Técnica Mista de tinta acrílica, PVA e canetas especiais
Tela de algodão
Disponíveis para aquisição